Pressão aconteceu em ao menos três unidades. Em uma delas, chefe chegou a medicar a equipe doente por conta própria.

FUNCIONÁRIOS BRASILEIROS da rede de lanchonetes McDonald’s que testaram positivo para covid-19 afirmam que estão sendo pressionados por seus superiores para voltar a trabalhar mesmo com o risco de contaminar outras pessoas. Conversei com três trabalhadores de unidades distintas. Um deles denuncia também que seu gerente chegou a medicar outros funcionários com sintomas de covid e que a empresa não tem seguido todos os protocolos sanitários, obrigando-os a compartilhar equipamentos de proteção individual, como toucas, viseiras e casacos.

Rafael trabalha há mais de quatro anos em um McDonald’s do interior de São Paulo. Sua identidade será preservada, assim como a unidade em que é funcionário, por temer represálias. No final de 2021, ele apresentou sintomas de covid-19, se dirigiu a uma Unidade de Pronto Atendimento, a UPA, e, lá, recebeu um atestado provisório para ficar afastado da empresa durante oito dias enquanto aguardava o resultado.

Mas, antes desse prazo expirar, ele afirma ter recebido uma ligação de seu gerente, que teria dito para ele voltar a trabalhar, pois o resultado do exame havia dado negativo. Rafael não compreendeu como seu superior poderia ter conseguido ver o resultado do exame, que foi feito em uma unidade pública de saúde, sem qualquer suporte da empresa. Para tirar a dúvida, o trabalhador, então, ligou para a UPA e foi informado de que o resultado ainda não havia saído – e que ninguém, além dele mesmo, poderia ter acesso ao documento. Como mostram prints de uma conversa no WhatsApp, o gerente mentiu. Dias depois, o resultado saiu positivo. Rafael, então, se perguntou: “e se eu tivesse voltado a trabalhar?”.

Ao informar seu superior sobre o resultado, o trabalhador recebeu a seguinte mensagem: “Poderia não comentar com outros funcionários para eles não ficarem apavorados?”.




Além de Rafael, conversei também com outros dois trabalhadores dessa unidade. Eles confirmam que, do fim do ano para cá, houve um surto de covid na loja, e muitos funcionários testaram positivo. Desesperado com o rombo na equipe, o gerente teria tomado medidas drásticas. “Ele comprou um monte de remédio e estava medicando os funcionários [que apresentavam sintomas de covid-19]. Tem um funcionário que passou mal uns tempos atrás, e o gerente entuchou remédio no menino”, me disse Rafael. Tentei contato com esse trabalhador, mas ele não me respondeu.

O funcionário reclama ainda que o McDonald’s não teria cumprido as normas de saúde estipuladas para evitar que os trabalhadores se contaminassem. “No começo da pandemia, um outro gerente comprou um pacotinho de máscaras, e os funcionários simplesmente usavam as mesmas máscaras. Era máscara comunitária”, pontuou. “A sala de almoço é minúscula. São 10 funcionários comendo juntos. Sabe aquelas viseiras, que são EPIs? Eram divididas. A câmara fria tem todo um EPI para entrar lá, mas não é individual, é coletivo. A empresa fornece duas balaclavas [uma espécie de touca para proteção facial]. São quase 30 funcionários. Trinta rostos diferentes passando pela mesma balaclava, já que todo mundo pode entrar na câmara fria. Inclusive, a gente não recebe adicional de insalubridade para isso, mas eles obrigam a gente a entrar lá”.

Os dois colegas de trabalho de Rafael confirmam que os EPIs são compartilhados, aumentando o risco de um trabalhador transmitir covid para os outros.

Em outra cidade do interior de São Paulo, Joana conta ter apresentado sintomas de covid na segunda semana de janeiro deste ano. Depois de ir ao médico para fazer o teste, ela recebeu um atestado de afastamento enquanto aguardava o resultado. Nesse meio tempo, ela afirma ter recebido ameaças do superior. “O gerente do estabelecimento ficou bravo e falou que eu ia me foder se o exame desse negativo. Ele disse que eu ia ficar com falta”.

O terceiro relato é de Fabiana, que trabalha há mais de três anos em uma unidade do McDonald’s localizada no Distrito Federal. Em junho de 2020, ela apresentou sintomas da covid-19 e logo foi a um hospital público. Lá, fez o exame e, dois dias depois, o resultado deu positivo. “Meu gerente viu o atestado e ficou louco, me ligando às duas horas da madrugada. Eu estava passando mal. As ligações eram para eu voltar a trabalhar e não falar com ninguém da loja sobre o assunto”, contou. Ela se negou a voltar. “As ligações continuaram. Eu desligava”. O marido de Fabiana me confirmou a história e disse que presenciou três ligações do superior.

Depois dos 14 dias de atestado, Fabiana diz que ainda não estava bem de saúde e voltou ao hospital. “Eu estava fraca, não estava comendo. E o gerente ainda me ameaçando”.

Esse não foi o único problema enfrentado pela funcionária. Ela afirma ter descontos indevidos na folha de pagamento, além de já ter presenciado racismo e gordofobia dentro do restaurante. Recentemente, Fabiana acionou um advogado para questionar esses descontos, mas a ação não irá mencionar as ligações recebidas. “Não temos prova robusta, apenas o relato testemunhal”, falou seu advogado.

Quando o empregador faz esse tipo de pressão perante o empregado, estamos diante do que chamamos de assédio moral”, explicou Flávio Roberto Batista, professor da Faculdade de Direito da USP. “E, em casos de assédio moral, raramente existe uma outra prova que não seja a prova testemunhal”.

Nos relatos desses três funcionários do McDonald’s, o problema vai além da relação entre o empregador e o empregado vítima do assédio moral, já que forçar uma pessoa com sintomas de covid a voltar para o trabalho pode colocar outros funcionários em risco. “Quando o empregador pratica assédio moral contra um empregado, ele vai responder pelos danos, mas, provado o fato de que ele está criando condições de perigo coletivamente em relação à saúde e segurança do trabalho, isso atrai para ele uma responsabilidade penal no âmbito administrativo. A fiscalização do Ministério do Trabalho aplica multas em relação a isso, mas também em relação ao que se chama de dano moral coletivo”, diz Batista.

A advogada Betina Santos, que integra a União Geral dos Trabalhadores e é colaboradora da equipe jurídica da Sem Direitos Não É Legal, campanha com atuação global pelos direitos dos trabalhadores do McDonald’s, vê a situação com preocupação. “Apresentando atestado médico com indicação de quarentena, o trabalhador tem direito ao afastamento”, disse. “Se o empregador mantiver a recusa do laudo médico, pressionando o empregado a descumprir o afastamento prescrito, é possível realizar uma denúncia formal acessando o Canal Digital de Denúncias Trabalhistas disponibilizado pelo governo federal”.

Procurado pelo Portal The Intercept, o McDonald’s ignorou as denúncias, se limitando a dizer que, desde o início da pandemia, “reforçou seus rigorosos protocolos de segurança e saúde para assegurar a proteção aos seus funcionários e clientes”. A empresa garantiu também que “caso o funcionário apresente sintomas do coronavírus, ele é imediatamente afastado e encaminhado para avaliação médica”. Pelo jeito, falta avisar seus gerentes.