No dia 9 de janeiro, ao serem detidos pela destruição provocada na véspera no Palácio do Planalto, no STF e no Congresso Nacional, muitos dos golpistas já ingressaram na justiça para conseguir o relaxamento da prisão em flagrante. Outros tantos o fariam nos dias seguintes. No total, foram 1.398 presos pela Polícia do Exército e Militar do Distrito Federal — embora uma parte já tenha sido solta.
O Intercept teve acesso aos depoimentos de alguns custodiados e às justificativas usadas pelos advogados para soltá-los. Ao lado dos argumentos jurídicos mais comuns (residência fixa e ausência de antecedentes criminais), doenças e a necessidade de trabalhar para sustentar a casa são as alegações que mais vezes aparecem.
Alguns casos chamam bastante atenção, como o de C.R.V., de Blumenau, em Santa Catarina. Na peça, sua defesa anexou honrarias que ele recebeu no Rotary Club da cidade, como demonstração de “participação comunitária ativa e exemplar”, além do “reconhecimento pelo desempenho de relevantes serviços comunitários”.
Também como justificativa, traz o atestado de uma ginecologista que escreve de próprio punho que sua paciente de 73 anos, mãe do golpista detido, necessita dos cuidados do filho, “que é quem cuida dela”, diz a médica.
A.P.S., de Florianópolis, capital do estado sulista, tentou usar de sua condição prestigiada no trabalho para se declarar uma pessoa “idônea”, sem “comportamento que desabone suas qualidades como profissional ou mesmo nas relações interpessoais, profissionais e pessoais”.
Sua sócia em uma empresa no formato de e-commerce declarou para a justiça que a detida exerce a função de CEO na companhia, além de reforçar que ela demonstra “um trabalho ético e de qualidade”.
Já o personal trainer J.C.D.C., de Belo Horizonte, Minas Gerais, anexou a declaração de uma de suas clientes, que afirma ter consciência de que o profissional é arrimo de família — aquele que garante o sustento da casa. A ex-esposa também escreveu, de próprio punho, um relato de 10 linhas dizendo que, a partir do trabalho dele, obtém a pensão alimentícia para suprir as necessidades da filha, de 9 anos.
O advogado de C.M.M., de Santa Catarina, alega questões humanitárias para pleitear que a empresária tenha a prisão preventiva convertida em domiciliar. O argumento é que ela é solteira e tem uma filha de 4 anos.
Nos autos, o advogado escreve que o ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça “observou que é cabível a concessão de prisão domiciliar a mulheres com filhos de até 12 anos incompletos, desde que não tenha havido violência ou grave ameaça” — embora seja exatamente o oposto daquilo registrado nos atos de 8 de janeiro.
Uma parte considerável dos golpistas detidos cita problemas de saúde, sejam físicos ou mentais, seus ou de familiares.
A.G.S., do interior de Pernambuco, anexou um relatório médico em que afirma sofrer de ansiedade generalizada, insônia não-orgânica e hipertensão primária. Listou também a quantidade de medicações de que faz uso regular e quantos comprimidos toma por dia.
A defesa de J.C.A., de São Miguel do Iguaçu, no interior do Paraná, colocou nos autos um atestado médico que diz que o paciente sofre com dores lombares e tonturas recorrentes.
M.R.B., de Quirinópolis, em Goiás, fez um combo de justificativas: atestado médico de distúrbio psiquiátrico, com receita controlada – precisa tomar um comprimido duas vezes ao dia; certidão de nascimento do filho, com um mês de vida; e a declaração de que é o único provedor financeiro da casa. Ele declarou ser portador de transtorno afetivo bipolar tipo II, uma condição que, “se não medicada”, o leva a cometer atitudes impulsivas.
R.A.M., do interior paulista, listou uma série de doenças da mãe, de 77 anos, se colocando como “quem a acompanha em todos os seus atos, bem como lhe presta toda a assistência necessária”. A mãe é descrita em um laudo médico como acamada, hipertensa, diabética, portadora de transtorno ansioso-depressivo, além de paciente em tratamento de câncer de mama.
Mesmo com a condição extrema de debilidade da mãe e de declarar ser a pessoa que cuida dela, em seu depoimento à Polícia Civil, R.A.M. disse que chegou a Brasília um dia antes do ato violento e estaria disposta a ficar na capital federal por sete dias. Sua vinda, afirma, “teve como objetivo lutar contra a implantação do comunismo no Brasil”.
Nesses mesmos processos em que localizou a defesa dos detidos, o Portal The Intercept mostrou, a partir dos depoimentos dos custodiados, que o Exército Brasileiro deu proteção aos golpistas durante a invasão em Brasília. Alguns golpistas disseram que ficaram sentados, outros ajoelhados e passaram a rezar para os militares. Um deles falou que, em determinado momento, “o Exército fez uma ‘casinha’ para os manifestantes, que ficaram encurralados com a chegada da tropa de choque”. Outro preso chegou a afirmar que houve confusão para distinguir a atuação de cada força de contenção, porque a “polícia agiu de forma mais truculenta, enquanto o Exército foi mais cuidadoso com as pessoas”.
É realmente tocante que, depois de presos, os golpistas apelem para tentar escapar das consequências impostas por participarem de um ato terrorista. As prisões brasileiras são superlotadas e mal-cuidadas e a população carcerária sistematicamente sofre com transtornos mentais e problemas de saúde. Aquele não é e nunca foi um espaço saudável.
O encarceramento em massa – especialmente da população negra – é um problema crônico do Brasil. A aplicação desigual e punitivista da lei sempre destruiu lares, encarcerou arrimos de família e deixou pessoas vulneráveis sem seus cuidadores. Mas os patriotas nunca se importaram com isso – afinal, até outro dia, bandido bom era bandido morto.
Curiosamente, depois de presos, os direitos humanos passaram a valer.
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